quinta-feira, 8 de junho de 2017

Feriados religiosos

A agenda não diz nada, que é pagã. Mas dizem que vem aí a festa do corpo de deus, e que é feriado.
Ninguém explica o que uma tal coisa seja, embora seja sabida a sua longa tradição religiosa. No Memorial do Convento, José Saramago dá-nos uma ideia.

"(...) Passa a procissão entre filas de povo, e quando passa rojam-se pelo chão homens e mulheres, arranham a cara uns, arrepelam-se outros, dão-se bofetões todos, e o bispo vai fazendo sinaizinhos da cruz para este lado e para aquele, enquanto um acólito balouça o incensório. Lisboa cheira mal, cheira a podridão, o incenso dá um sentido à fetidez, o mal é dos corpos, que a alma, essa, é perfumada.
Nas janelas só há mulheres, é esse o costume. Os penitentes vão de grilhões enrolados às pernas, ou suportam sobre os ombros grossas barras de ferro, passando por cima delas os braços como crucificados, que desferem para as costas chicotadas com as disciplinas, feitas de cordões em cujas pontas estão presas bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro, e estes que assim se flagelam é que são o melhor da festa porque exibem verdadeiro sangue que lhes corre da lombeira, e clamam estrepitosamente, tanto pelos motivos que a dor lhes dá como de óbvio prazer, que não compreenderíamos se não soubéssemos que alguns têm os seus amores à janela e vão na procissão menos por causa da salvação da alma do que por passados ou prometidos gostos do corpo.
Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas de cores, cada um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo amador sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprenderemos a chamar sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o amante na confusão dos penitentes, dos pendões, do povinho derramado em pavores e súplicas, do vozear das ladainhas, do bambear desacertado dos pálios, dos cabeceamentos bruscos das imagens, adivinhará ao menos pela fitinha cor-de- rosa, ou verde, ou amarela, lilás se não vermelha ou cor do céu, é aquele o seu homem e servidor que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não podendo falar, berra como touro em cio, mas se às mais mulheres da rua, e a ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente ou que a vergastada foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá de cima se vejam, então levanta-se do corpo feminil grande assuada, e possessas, frenéticas, as mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do chicote, que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do seu adiantamento. Está o penitente diante da janela da amada, em baixo na rua, e ela olha-o dominante, talvez acompanhada de mãe ou prima, ou aia, ou tolerante avó, ou tia azedíssima, mas todas sabendo muito bem o que se passa, por experiência fresca ou recordação remota, que Deus não tem nada que ver com isto, é tudo coisa de fornicação, e provavelmente o espasmo de cima veio em tempo de responder ao espasmo de baixo, o homem de joelhos no chão, desferindo golpes furiosos, já frenéticos, enquanto geme de dor, a mulher arregalando os olhos para o macho derrubado, abrindo a boca para lhe beber o sangue e o resto. Parou a procissão o tempo bastante para se concluir o acto, o bispo abençoou e santificou, a mulher sente aquele delicioso relaxamento dos membros, o homem passou adiante, vai pensando, aliviadamente, que daqui para a frente não precisará vergastar-se com tanta força, outros o façam para gáudio doutras."
S isto é a procissão do corpo de deus, para quê mais palavreado?