quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

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«E de súbito isto regressa como um vómito, o mesmo enjoo, o mesmo mal-estar, o mesmo nojo. O prisioneiro sem pernas que se amarrava ao guarda-lamas do rebenta-minas e gritava o tempo todo. O quartel da Pide com os prisioneiros lá dentro, e a mulher do inspector que lhes dava choques eléctricos nos tomates. O alferes que durante um ataque saiu da caserna com um colchão sobre a cabeça, a borrar-se literalmente de medo.O primeiro morto, um condutor a que chamávamos Macaco. A gente a escolher os nossos próprios caixões na arrecadação: continuo a lembrar-me do meu. Pregava-se a medalha que trazíamos ao pescoço, com o número mecanográfico e o grupo sanguíneo
(a minha 078902630RH+)
na madeira. Os pelotões de regresso da mata, desfeitos de cansaço. O helicóptero
- Atenção mosca atenção mosca
dos feridos. A minha pergunta constante
- Porquê?
o ruído do milho, à noite, contra o arame. O apontador de metralhadora, ferido no pescoço, que continuava a disparar. Os nossos morteiros 70 contra os morteiros 120 do MPLA. O Melo Antunes a comunicar que tínhamos feito prisioneiros
(uns velhos, uma mulher grávida)
o pide a dar um pontapé na barriga da mulher grávida, o Melo Antunes a apontar-lhe a pistola e a mandá-lo ir-se embora, o pide a ameaçá-lo, o general furioso com o Melo Antunes. Como perdíamos muitas camionetas com as minas, a ordem
- As Mercedes são ouro, os homens que piquem
e com as picas das minas anti-pessoais a arrancarem as pernas aos soldados. Metia-lhes garrotes e iam acabar no Luso de embolias gordas. Isto regressa como um vómito e tenho de falar nisto. E vocês têm de ouvir, porque eu continuo a ouvir. Em nome do Pereira, do Carpinteiro, dos outros que perdemos. Vocês têm de ouvir. Mesmo que eu escreva isto mal porque estou a escrever com o sangue dos meus mortos. Não posso esquecer. Não consigo esquecer.(...) Não terei sido um criminoso por haver participado nisto? O Melo Antunes
- Às vezes apetecia-me morrer
e não teremos, de facto, morrido disto, Ernesto? Porquê? O Melo Antunes
- Cada vez mais isto me parece um erro formidável
e a mim não me parecia nada, apenas queria durar. Comíamos merda, bebíamos a água porca dos filtros. Eu comi. Eu bebi. (...)»
[António Lobo Antunes, Terceiro Livro de Crónicas, Lisboa, 2006, Ed. D. Quixote]