sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pausa

Longa!
Durante o Verão, só acidentalmente se abre a porta às visitas.
Visitas, disse?! Se dito foi, fica dito.

Eleições - 1

Sem a Europa Portugal não anda, que o não talharam para isso. Nem para a frente, nem para trás. É um fidalgo arruinado a sucumbir devagar.
Sem a Europa, o Gomes da Costa já tinha voltado, em cima dum cavalo, na década de oitenta.
Sem a Europa já não havia eleições, nem sequer pequeno-almoço.
Mas há limites para tudo. Se não se for lá por elas, seja ao menos pela bucha.

Relíquia antiga IV

Copiando descaradamente as velhas tácticas da operação nó cego, que a seu tempo reduziram a pó o planalto dos macondes, desencadeei uma série de campanhas que me permitiram ultrapassar a crise dos pulgões amotinados. Porém, logo após a euforia da vitória, dei conta do estado lastimoso em que me ficara o terraço, quem tenha andado nas trincheiras da flandres saberá do que estou a falar.
Ora este era o pequeno património que me restava da família, e guardava para mim um vasto significado emotivo, a despeito de algum desvalor intrínseco. Pedi o parecer dum paisagista, que em boa hora me aconselhou a reconversão agrícola do espaço. Sem ajuizar, por certo, das metamorfoses a que me ia sujeitar.
Havia que fazer opções. E não sei se foi a antiga preocupação de dar de comer a um milhão de portugueses, ou se foi a minha costela pagã a lembrar-me que nem só os deuses merecem um bom vinho. O facto é que não demorei a plantar uns bacelos que arranjei no mercado, após o que tratei de me associar a uma destas agremiações da lavoura de qualidade, que há muito me habituara a reverenciar.
Logo na primavera, estavam os bacelos a abrolhar os primeiros gomos, começaram a sair-me coelhos da cartola. Havia um qualquer instituto no ministério da agricultura, que pagava generosamente o arranque das cepas. E eu, moderno empreendedor, tinha que ser pragmático. Meti os catrapilos a arrotear o terraço, e ainda me sobrou capital para investir num parque de máquinas. Comecei logo por um jipe samurai de tracção integral, e passei a deslocar-me ao centro da cidade em viatura própria, liberto das indigestões da carris.
Eu era agora um empreendedor, como já ficou dito, e tinha o terraço devoluto. Frequentava os seminários da grape, à procura de entender, entre o tinto e o patanegra alentejanos, os meandros daquilo que toda a gente chamava a política agrária global. Por alguns anos, e enquanto, salvo seja, ia apalpando o terreno, apostei na cultura das oleaginosas, que funcionava de modo tão simples quanto surpreendente. Eu lançava as sementes à terra, e garantia logo a correspondente subvenção. Porém, sendo os gastos da colheita superiores ao valor do produto, o destino da plantação era mirrar-se lentamente, até se desfazer ao vento. Ficava eu livre de trabalhos vãos, enquanto o fundo de garantia se encarregava de manter-me em equilíbrio os orçamentos.
Esta espécie de pousio havia de ter como efeito uma notável melhoria dos solos, a tal ponto que me abalancei à cultura de frutas mais especiosas. Apresentei um projecto de plantação, cuja subvenção a fundo perdido incluía um sistema de rega científico, inventado por judeus do deserto. E embora mais adequadas às neblinas da nova zelândia, as plantas resistiram à escassez de águas e mostravam considerável vigor.
Passados três anos, a primeira produção foi tão fecunda que o mercado recusou absorvê-la por inteiro. A situação era de vera catástrofe, não havia estações de armazenamento para acolher tanta fruta, esgotou-se a capacidade nacional de produção de embalagens. Apoiado pela grape, exigi a intervenção do governo. E a resistência obstinada do ministro, a quem alguns jornais chegaram a imputar infames antipatriotismos, acabou por ser-lhe fatal às coronárias e à carreira política.
Mas não há fartura que em fome não venha a dar, conforme o outro diz. Logo no ano seguinte, chegou em maio uma tardia onda de geadas negras, e as belas promessas dos pomares foram-se murchando e acabaram mirradas. Reclamei do governo a declaração de calamidade, e consegui apoios de emergência que me pouparam à falência.
Mas ficara-me da fruta um sabor desconsolado, depois de ver como a geada perturbara o estado vegetativo dos pomares. Ainda fiz umas podas extraordinárias, umas empas de recurso, ainda apliquei umas caldas de aquecimento mas nada valeu a pena. E eu era agora um empreendedor, volto a dizê-lo propositadamente, tinha que fazer opções sustentadas de investimento.
Foi assim que me entreguei à produção de leite. Apresentei os planos num instituto do ministério, e logo vieram uns catrapilos a instalar a pastagem, quando nos estábulos se afinavam já os equipamentos de automatização. Chegaram por fim umas dúzias de vacas frísias, que eram um consolo para a vista.
Foram dois anos que me deixaram saudades. Isto antes de os tipos de bruxelas reduzirem drasticamente o subsídio à produção, e antes de os galegos terem entrado no mercado, parecia a dada altura que o rio minho se fizera leite.
Foi por então que tive que vender a casa de férias no algarve, antes de entregar um projecto de reconversão à produção de carne, que me evitou males maiores. Em boa hora se foram as frísias e vieram as charolesas. Havia no ministério um fundo de apoio por cabeça, e os técnicos agrícolas vinham controlar os efectivos, volta não volta. Eu recebia-os pela manhã, na adega, com tinto e patanegra da amareleja, e a tarde passavam-na no terraço, embrenhados em observações de campo. Dava uma trabalheira transferir nessas noites o efectivo para a marquise, onde eu tinha montado um cenário de pastagens alpinas, a vistoriar no dia seguinte. Mas as contagens finais resultavam generosas, e foi graças a elas que a exploração floresceu.
Um dia fui ajeitar o penso às charolesas, e dei com elas a dançar a polca, cheias de cortesias. O veterinário fez-me o diagnóstico à mesa do café, as vacas tinham enlouquecido. Estalara a moda na inglaterra, quando os cientistas quiseram obrigá-las a comer os antepassados.
Caiu-me o queixo de estupefacção, e fiquei dois minutos a benzer-me. Mas o homem adiantou logo que estava criado um fundo para abate. E eu aproveitei-me dele para trocar o todo-o-terreno e abandonar o ciclo produtivo.
Por uns tempos ainda estive tentado a reconverter-me à floresta, usando um fundo de modernização. Mas tenho-me limitado a ver arder as matas dos vizinhos.

da capo - 29

Dia da Raça

Falam-nos dum passado de marinheiros audazes, em que nos fomos ao mar, a descobrir novos mundos que demos ao mundo velho.
Do mar trouxemos por junto uma epopeia de mitos, feita de deusas carnudas, e uns tantos heróis pintados, e adamastores de papel.
Arrenego um tal passado. Que ou não somos, agora, o que já fomos, ou nunca fomos o que nos dizem que somos.
Levaram-nos, é o mais certo, a fingir o que não fomos. Se assim foi, nunca seremos o que nos dizem que somos.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Castanhas indianas

É o castanheiro da Índia, na flor da juventude. Quando floresce, tem um quê de candelabro. E dá umas castanhas reboludas, de grande rabo redondo, que não se podem comer. São castanhas indianas.
Usam-se nas arcas do bragal, para atormentar as traças, ao que dizem. E ao contrário do sonho dos visionários, que vivem de maravilhas (e prebendas), a única conclusão é que a aventura das Índias até às pobres das traças foi funesta.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

LER ou não ler

Abre-se a LER para ouvir falar de livros. A contar com a garantia do contrato de prestação de serviços, com quem de livros fala por ofício. E dá-se com esta conversa de Francisco José Viegas:
Há uns meses, a LER publicou uma entrevista com A. M. Pires Cabral - de frente ou de costas para aquelas montanhas, a sua imagem é extravagante, inabitual. A sua poesia não é deste mundo - refere-se a coisas como o Marão, o Nordeste, palavras que ardem, palavras que se referem a coisas que vamos desconhecendo (arado, levandisca), terra que ardeu ou apenas ficou deserta: [transcreve-se poema de Cabral]
Uma poesia destas (Arado, edição Cotovia) não se festeja - observa-se como uma paisagem, um mapa perdido num manual de geografia.
Mas então que serviço é este? O que é que esta merda quer dizer?! O que é que um leitor que a não conheça, pode esperar da poesia de Cabral? O divulgador enaltece ou menoscaba? É isto um apontamento crítico, ou é arte de assinar o ponto, sem ter de gastar na tinta?
Há em Portugal uma diletância atávica, que dói e é fatal. E usa salamaleques e pauzinhos de incenso. E faz referências universais. E gesticula cosmopolitamente. Mas ocupar um espaço é-lhe um fim. Porque se esgota nisso.

A Corja

Os simplórios já vinham considerando que o PPD era um quisto sebáceo. Os menos distraídos há muito suspeitavam de que havia ali um abcesso infectado. Os mais avisados nunca duvidaram de que aquilo era um furúnculo perigoso. E o presidente Cavaco sabia perfeitamente que se tratava dum tumor maligno. Na sua impoluta competência de campónio, que ninguém regateará, conheceu-os a todos muito bem. Foi por isso que, após dez anos de governo, em 1995, submeteu a corja a um tabu que durou o ano inteiro, e acabou por enjeitá-los a todos. Nunca mais saíram da orfandade.
Os factos conhecidos são claros. Uma boa dúzia de figuras cavaquistas - ministros numerosos, secretários de estado, chefes das secretas com procuradores à mistura, comissários políticos partidários - praticaram, ou foram coniventes, ou receberam benesses duma vasta panóplia de malfeitorias: traíram o país, defraudaram o povo, usaram o estado para proveito próprio, trocaram poder político por benefícios pessoais, traficaram influências, intercambiaram interesses, piratearam o erário, puseram-se a render, mostraram o que são. Este, salteador sem escrúpulos. Aquele, abutre faminto. Aqueloutro, cúmplice calado. Entre todos, e salvo outra opinião, a cadeira de espaldar cabe ao conselheiro de Estado Manuel Dias Loureiro.
E agora, presidente Cavaco? Sacrificando os anéis do cavaquismo, terás salvo os próprios dedos. Mas salvaste? Como foi que pudeste nomear, e como poderás ainda manter, sentado à cabeceira da Nação, um conselheiro de Estado desta estirpe? Sei que vais titubear que as sentenças penais competem só à justiça. E as éticas? E as morais? E as políticas? E as outras? Ou será que o conhecido ainda é pouco, e afinal a procissão vai só no adro?

terça-feira, 26 de maio de 2009

Moeda única

Contar uma história pressupõe um exercício prévio: encontrar a voz que a diga, definir uma forma de a narrar.
Uma história é ela própria, e o modo como é contada. São duas faces duma moeda única.
O escriba que usa sempre a mesma voz gasta a vida a contar a mesma história. É um ajuntador de palavras. Ou deixa as personagens a falar sozinhas, um subterfúgio comum.

Relíquia antiga III

O jagudi de pescoço pelado, indígena dos pântanos, poisou no galho escasso do embondeiro. O soldado de infantaria vinha cansado no coice do pelotão, acomodou a bazuca no capim e estendeu-se à sombra do jagudi.
O pássaro ficou a debicar a última perna dum caranguejo do lodo, e o atirador abriu uma lata de sardinhas de conserva, que tirou do bornal.
- Mais me valia um pássaro na mão! - disse o soldado de infantaria.
- Antes te acudiram dois a voar! - disse o jagudi dos pântanos.
E assim ficaram. Mas quando o soldado atirador deu um piparote na lata vazia, um raio de sol fez ricochete no fundo da lata e regressou ao infinito.
Atentos ao sinal estavam dois bombardeiros de focinho comprido, que patrulhavam as nuvens e tinham ordens para abater tudo quanto mexesse. Vieram como duas setas, de nariz esticado e sorrateiro, rasgaram o ar por cima do embondeiro e largaram as duas bombas de napalm.
Iguaizinhos na vida, o jagudi e o soldado de infantaria mantiveram-se idênticos na morte. Só divergiam na metafísica.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Devoções

Fica ali ao Largo do Padrão, numa rua a subir, entre a montra e a entrada duma loja de bolachas de animais. Atrás do gradeado que pintaram de fresco, num calvário de barro, está um Cristo ladeado por anjinhos, no lugar dos dois ladrões. Não fossem as florinhas naturais, e a ranhura da caixa das esmolas, ninguém reparava nele. Até as três Marias se ausentaram.
Dou por mim a cogitar que estes martírios antigos são dum tempo passado. Mas já no autocarro encontro afinal as três Marias. Não respeitam a esbelteza das pagelas antigas, porque andam atarefadas onde mais falta fazem. Carregam sacos de compras, de braços derreados, a pensar na ceia da família.

Pastiche XII

Que diremos do mar que sulcaram antanho
antigas caravelas? O mar é indizível,
sem as dunas da margem que pisamos.

domingo, 24 de maio de 2009

Açúcar e adoçantes

Tempos houve em que o editor era uma figura tutelar. A sua casa era uma marca de água, uma garantia de qualidade. Porém as coisas mudaram, e hoje o editor é mais um náufrago na enxurrada do mercado. Transformou-se em empresário da indústria da cultura.
Para tudo ficar bem explicado, o melhor é dar-lhe a palavra:

- No centro da edição já deixou de estar o autor, que produz a qualidade e o pensamento. Quem lá está hoje é o leitor. O que o editor procura é um autor que lhe escreva o que o leitor quer ler.
- Há mudanças que são inevitáveis, e lutar contra isso é romantismo. Um editor com sucesso é aquele que é capaz de compreender os desejos e as necessidades do leitor.
- Hoje há fundos de investimento, e grupos financeiros que estão no livro como podiam estar noutra coisa qualquer. E a sua filosofia é naturalmente o dividendo.
- A ficção de qualidade cedeu lugar à literatura comercial. Dá-se maior atenção a livros sem relevância literária, do que a obras de qualidade.

Há nisto contradição nos termos. Ao reduzir a obra à condição de produto comercial, dependente dos desejos do leitor, o mercado gera um ecossistema onde a criação artística não conta, nem faz falta. Nem sequer a gramática da língua. Ficam ambas exiladas em nichos ecológicos, de natureza elitista, numa paisagem cultural degradada por infestantes.
O consumidor comum terá, ainda assim, a ilusão de ser leitor, e de aceder à literatura. Há-de mesmo figurar nas estatísticas. Mas é uma ilusão culturalmente fatal. Levam-no a confundir adoçantes com açúcar.

sábado, 23 de maio de 2009

La(nça)mento poético

Eram dois a apresentar o inédito, e a falar da obra duma mulher desaparecida há muito tempo, quase um século. Um deles era catedrático, o outro vinha como oficial do ofício. E o escasso público aguardava a novidade, que a coisa prometia. À saída do primeiro modernismo, no dédalo perturbado em que a arte se achava, todos queriam conhecer que divindades incensava a poetisa.
Um deles leu duas composições, e exaltou a luminosidade nocturna daqueles versos. E o parceiro leu outras tantas, para lhes realçar a nocturnidade luminosa.
Foi então que um dos presentes, aferrado talvez ao peso das palavras, quis saber donde nascia, no artista, a aparente contradição.
Um deles lançou mão da transcendência melancólica. O outro, mal querendo ousar, arriscou a depressão metafísica. E eu fiquei elucidado, com o rigor do diagnóstico.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Lições

No PREC, de que já poucos se lembram, tínhamos aprendido uma lição: não se imagina do que são capazes as classes poderosas, quando se trata de restaurar privilégios de clã.
Há outra lição que só tomamos agora, e só se acredita vendo: mal assegurado o mando, logo os poderosos se tornam predadores. Como corsários piratas, antes que mude a maré.

Queixas

Os adolescentes da Escola António Arroio receberam com vaias o primeiro-ministro. É um episódio que não deixa sobressalto.
Acham que têm um governo fascista, o que já dá que pensar.
E leu-se, nas pancartas que exibiam, que Marinetti é igual a Deus. É por isso que são todos futuristas, uma moda que já tem um século, e que eles conhecem mal.
Trazem a cabeça inchada de tralha pós-moderna. E um dia, que não tarda, voltarão para se queixar a sério.

Fancarias

O primeiro tropeção nas fancarias literárias da pós-modernidade passou por mim há muito, perdi a conta aos anos. Na altura passei por parvo, e não calculava ainda as funduras do charco. Por isso levei o caso tão a peito, coisa que hoje não sucede.
Um dia caiu-me nas mãos O Jardim das Nogueiras, que me desenterrou memórias infantis. A autora era, de resto, mulher encantadora, misto de bruxa e vestal de cultos orientais. Foi dela que ouvi falar pela primeira vez de Uppanishads, e de Aiyurvedas bramânicos, em excursões pelo exótico que um doce gesticular facilitava. Levei o Jardim para casa, há-de andar por aí no cotão duma estante.
O conteúdo já se me varreu, que não passava de neblina evanescente. Porém a dada altura tropecei numa frase que me pareceu truncada, que me pareceu defeituosa, que me pareceu gralhada. As letras estavam no papel mas eram indistintas, desfocadas, rasuradas. Era impossível lê-las. Ora ao tempo só havia rotativas, não as impressoras de hoje, que os vírus endoidecem. E eu tomei a coisa por defeito de impressão. Mas depois vieram parágrafos inteiros, páginas ilegíveis, não sei se algum capítulo. E fui ao livreiro reclamar.
O homem lá me foi explicando que aquilo era mesmo assim. E que o melhor era eu abrir os olhos à vastidão dos recursos da arte contemporânea.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Pastiche XI

Que estareis contando ao vento, folhas da oliveira?
A história de pasmar dum encantado mouro
que um dia nos plantou...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Desacordo

Adivinha-se nela a sapiência antiga, de quando era mestre-escola, num tempo em que as verdades eram definitivas. Guarda ainda a voz clara e colocada, e o tom confiante e assertivo, como agora se diz.
- Mesmo para ser cão é preciso ter sorte! Até eles têm os seus carinhos, os seus tratos, os seus cuidos! É preciso ter sorte para tudo!
As companheiras de viagem aconchegam nas pernas a tralha das compras. E acenam em silêncio, convencidas, já levam que pôr na mesa do jantar.
Eu olho em volta, hesitante. Não sei muito bem porquê, mas não concordo.

A olaia suave

O manual diz que é a árvore da Judeia, a voz do povo chama-lhe árvore de Judas. É ingratidão que eu não entendo.
Ocupava no jardim o recanto mais ameno. Quando as camélias de inverno claudicavam e o sol começava a decidir-se, trazia sempre um milagre. Os ramos hirtos de frio, e mesmo o tronco já velho, cobriam-se duma cor diáfana e suave. E só mais tarde as folhas apareciam, dum verde leve, hesitante, não chegavam a tapar o céu.
Então acordavam as abelhas, que moravam mesmo ao lado, nuns cortiços. E eu ficava por ali, entre zumbidos, a fazer poços no chão.
Nunca soube que mãos a plantaram. Judas não foi, de certeza.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

As 7 Maravilhas, ou a história lavada a seco

O prof. Pedro Dias é conselheiro d'As 7 Maravilhas de Origem Portuguesa. E é também autor da fala que se segue:
A escravatura nunca foi um objectivo da Expansão Portuguesa (...). O facto de esses lugares terem sido entrepostos onde alguns negreiros portugueses compravam escravos aos sobas africanos, que vendiam os homens e mulheres das próprias tribos ou das tribos vizinhas que capturavam, não é tão extraordinário que mereça referência nos textos do site das 7 Maravilhas. Mais de três mil anos antes de Portugal ser independente já os sobas vendiam súbditos aos núbios e aos egípcios. (...)
Após a conquista de S. Jorge da Mina pelos holandeses e, depois, pelos ingleses a esses, (!) a principal função da fortaleza foi a de entreposto de negros para levar para a América. A conquista holandesa de Angola, por exemplo, teve como fim o comércio de escravos para as plantações nas Antilhas, Pernambuco e Baía, que entretanto nos tinham conquistado.
Mas com a reconquista do Nordeste brasileiro e de Angola e Benguela, essse tráfico estancou. É certo que, até ao séc. XIX, houve envio de africanos para as Américas, mas em número que não tem comparação com o que os ingleses, holandeses e franceses atingiram.
Descontando os tropeções na língua, não é a pequena minúcia da história que mais causa repulsa. É a visão da história pátria em si mesma, mirada assim de esguelha, e de palas nos olhos.
Pedro Dias, professor e conselheiro, está bem onde está. N'As 7 Maravilhas, pois decerto, a lavar a história a seco, que é ofício muito antigo. Dava-me jeito saber onde lhe fica o estanco, para lá mandar branquear os lençóis da semana!

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Consumatum est

Após um período de construção de 22 anos, a linha do Tua chegou a Bragança em 1906. Em 1992 foi encerrada a partir de Mirandela, mantendo-se aberto o troço inferior do Tua. Em 120 anos de vida da obra, ocorreram 4 acidentes num único ano (Fev 07/ Ago 08) dos quais resultaram 4 mortos e 31 feridos. Estas ocorrências foram fruto do desleixo, da incúria, da irresponsabilidade e do abandono deliberado a que a linha foi sujeita. A falta de alinhamento dos carris, o empeno e mau estado dos mesmos, o apodrecimento das travessas, a má ligação entre umas e outros, o péssimo estado das juntas e a falta de estabilidade dos taludes eram factos que um leigo reconhecia. O descarrilamento há dias verificado terá sido o último, e constituiu o trânsito em julgado da sentença de morte, que os supostos responsáveis pela linha há muito lhe tinham ditado.
O problema da energia na vida do país é incontroverso. Sobretudo da energia limpa, renovável, onde estiver disponível. Mas isso não quer dizer que se construa uma barragem onde houver dois montes com um vale no meio. Cada barragem é um compromisso, entre o que se ganha na sua construção, e aquilo que se perde construindo-a. O bom governo é o compromisso certo.
Errada foi a decisão do Baixo-Côa, que levou ao sacrifício do Sabor e do Tua. Foi um voluntarismo, que o tempo se encarregou de demonstrar. Se esquecermos a Quinta da Erva Moira, que ficaria submersa, o essencial do património das gravuras era salvaguardável.
Um dia, mais cedo do que tarde, um bom governo retomará o projecto, pois o que tem que ser tem muita força. Mas já não irá a tempo de evitar um erro sobre outro erro. Pois qualquer que seja a alternativa que venha a ser praticada (existem as versões mais visionárias!) a perda patrimonial da linha do Tua será irreparável.
Mas Portugal está há muito habituado a isso. A deixar os militares mandar na guerra, quando tão pouco sabem da vida e das finanças. Os intelectuais mandarem na cultura, eles que desconhecem a economia. Os engenheiros mandarem nas obras, quando pouco sabem do património e da história. Os economistas mandarem nas finanças, sem saberem da vida nem da paz. Os gestores mandarem no património, desconhecendo a arte e a cultura. E os políticos mandarem na história, malbaratando a cultura, as finanças, a paz, o património e a vida.
Quem não aprende com os erros, passa a vida a repeti-los!

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Farsa

Contrariando o guião, o espectáculo muda afinal de género. Derivado à estirpe das personagens.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Tragicomédia

Sócrates vai à Madeira, distribuir Magalhães e enfrentar a besta.
A besta recebe-o de braços abertos, pois não pode fazer dele uma vítima.
Mas solta-lhe às canelas vários cães, dos que lá tem amestrados.
Convém a Sócrates levar a matilha.

Magalhães?!

Pode ser que sim, que o objecto seja uma alavanca para mover, a prazo, a iliteracia indígena. Pode ser que seja mais que um voluntarismo, mais que uma reverência pacóvia à tecnologia, mais que uma táctica governativa. Oxalá eu me engane, pois o que me parece é outra coisa!
Todos os meios electrónicos tendem a ser vistos como brinquedos, pela miudagem. E o que uma criança aprende, de facto, com um computador, é só a manipulação do mesmo computador. O que, em si, não constitui uma competência mental decisiva. Teoricamente facilita o acesso à informação. Mas não envolve criatividade, nem discernimento, nem imaginação, nem memorização, nem concentração mental. Muito pelo contrário!
A utilização precoce de meios electrónicos pode gerar crianças super-estimuladas, mas não forçosamente adolescentes mais capazes, nem mais apetrechados. Pode mesmo ser-lhes prejudicial, no que diz respeito à sociabilidade, ao crescimento integral.
Levando a coisa ao limite, só uma coisa se pode arriscar: o Magalhães é uma boa ração para cãezinhos de Pavlov. Tudo o resto são boas intenções. E quem me dera a mim estar enganado!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Dolce Vita

O novo espaço comercial é o melhor do país, o maior do planeta, o mais vasto da galáxia.
Há mesmo esta bicha de patuscos, que lhe dormiram à porta na véspera da abertura. Entre eles a mulher grávida, em avançado estado. Mas hão-de ser os primeiros a inaugurar o paraíso, o último jardim onde a vida ainda era doce.
Entre as possíveis leituras do estranho desconchavo, o mais cómodo é pensar na menos cínica. Que simplicidade é esta, que ainda interpreta à letra o linguajar do mercado?

domingo, 10 de maio de 2009

Ecos da Sonora XVII

Angola era uma terra fascinante. Ou nem tanto.
Foi assim que a viu Miguel Torga, por 1970. Bem sei que era uma visão de poeta, mas enfim...

in A CRIAÇÃO DO MUNDO:
(...) Quando a altas horas da noite desci em Luanda, senti repentinamente não sei que abalo íntimo. Voltava outra vez a ser criança e a desembarcar no Rio de Janeiro. O mesmo calor húmido e pegajoso, a mesma convivência de sangues, a mesma pronúncia amestiçada... Teríamos realizado ali também um segundo Brasil, enobrecendo o planisfério com mais uma gigantesca e fraterna comunidade multirracial?
(...) Só no dia seguinte, já com um sol escaldante a morder a pele, é que a verdade se mostrou na sua trágica nudez. Rodeada de bairros miseráveis, onde a vida destribalizada dos moradores parecia ter perdido toda a coesão social, a cidade lembrava uma Sodoma de irresponsabilidade cercada de maldição. Num cenário grandioso, e dramaticamente separadas por um fosso de incompreensão, duas etnias caminhavam lado a lado, uma vestida e a outra despida, uma a enriquecer e a outra a trabalhar, uma dignificada e a outra degradada. Lá estavam, erguidos nos plintos da glória, os heróis, os santos e os poetas. Lá estavam, inexpugnáveis, os baluartes do poder: a fortaleza, os quartéis, as esquadras da polícia. Lá estavam, sacrossantos, os templos da fé. Mas faltava o melhor: o espírito de serviço, a entrega natural a uma causa transcendente. Os valores que ali tinham curso eram todos da ordem do transitório. Até no desconchavo das construções se via. Incaracterísticos, iguais a tantos outros que enxameavam o mundo, anárquicos e insólitos ao lado dos tugúrios de lata, os arranha-céus pareciam delírios de papelão. Evocava Ouro Preto ou Salvador, tão nossos e tão tropicais, tão à medida dos senhores e dos escravos, e desanimava. Que demónio de orgulho e cobiça nos tentara e ensandecera? Como é que tínhamos desaprendido tanto?
(...) Assim esclarecido, deixei aquela alucinação em cimento armado num misto de desilusão e melancolia, e meti-me pela terra dentro à procura de respostas mais animadoras às minhas inquietações. (...)
Outras cidades cresciam de longe em longe, tentaculares e floridas. Mas sempre implantadas num descampado imenso e rodeadas da mesma miséria suja e promíscua. O esforço épico de alguns pioneiros não fora secundado pela maioria. Ao cabo de quinhentos anos de uma presença formal, com figura jurídica mas sem textura humana, fora do perímetro de cada povoado a lei do sertão continuava inalterada. Os próprios massacres de que tínhamos sido vítimas o comprovavam incontroversamente. Só homens ainda na primitiva decência, certamente movidos por forças anímicas poderosas, mas alheios à graça da bênção cristã, se comportavam com tal ferocidade. (...)
E o pior é que não se vislumbrava em nenhum patrício, mesmo nos mais esclarecidos, o mínimo sentimento de culpa, sombra de remorsos por uma falência que era ao mesmo tempo uma traição. Todos de boa consciência, optimistas, reviam-se euforicamente no culto dos seus casos particulares, dos seus interesses, dos seus prazeres. Confundiam com a sua a imagem do bem geral. Seguros da legitimidade do domínio branco, até os apuros da véspera esqueciam e já nem a presença militar achavam justificada.
- Nós sabemo-nos defender. Temos armas...
(...)

sábado, 9 de maio de 2009

Campeonato

A proverbial inconsciência indígena não se fica pelas elites dirigentes. Taco a taco, há proletários que não cedem de barato a primazia. Vê-se bem nos transportes pesados.
Há dias, um camião largou em plena via um cilindro das estradas. Ontem rebentou em andamento uma carga de explosivos.
Se isto for, como parece, um campeonato, a bola de ouro já tem destinatário. É um sujeito que, há uns anos atrás, soltou no alcatrão uma banheira, com duzentos litros de ácido sulfúrico.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Pastiche X

Mil gorjeios festejam a primavera.
Mas cai a noite e só
o rouxinol se ouve.

O flagelo de Angola

Quando Savimbi, há anos, foi abatido no sertão angolano, alguém disse que desaparecera o flagelo de Angola. E muito embora os flagelos angolanos sejam tantos, desde há séculos, como as cabeças da hidra mitológica, a expressão era certeira como uma bazucada à queima-roupa, se uma tal coisa é possível.
Os trabalhos de Joaquim Furtado sobre a guerra das colónias têm mostrado à saciedade o que muitos troca-tintas sempre recusaram ver, no último acto da nossa tragicomédia imperial: a cegueira criminosa do regime colonial, e o verdadeiro papel de certos figurões nacionalistas.
Jonas Malheiro Savimbi, doutorado por Lausanne, emergiu para a luta de libertação vindo da UPA, essa nebulosa vaga onde se misturava selvajaria e superstição, tribalismo e ódio racista, feitiçaria, ânsia de poder, oportunismo e dinheiros da CIA. Emergiu da UPA porque ela já tinha um dono, e Savimbi não era galo para repartir poleiros.
Reciclado pelos chineses, foi instalar-se no Leste, porque as fronteiras do Congo só eram propícias a Holden Roberto. E era no Leste que se impunha anular a acção do MPLA, mesmo que tal significasse um serviço ao inimigo, e fosse enfraquecer e trair a luta anti-colonial. Mas Savimbi não estava lá para outra coisa, que não fosse alimentar a vocação de soba egocêntrico e vaidoso. E que não olha a traficâncias para vestir um dia o libré do poder, com que os europeus sempre souberam enfeitar os cafres. Alguns livros antigos falam disso.
O resto dizem-no os factos. Savimbi pôs-se ao serviço do poder colonial. E só não foi governador colonial do Bié, traído pelo próprio oportunismo. Ao mesmo tempo que jurava a trégua ao inimigo, e recebia dele munições, e armas, e logísticas avulsas, fazia nas matas congressos da UNITA, e desfraldava na imprensa internacional a bandeira das zonas libertadas.
Apresentou-se à cimeira do Alvor como quem vai a um exercício de estilo, na ânsia de chegar a Luanda. E na guerra que logo sobreveio, aliou-se ao apartheid sul-africano.
Denunciou as eleições de 92, porque o resultado não foi o que lhe convinha. E regressado à Jamba a toque de caixa, tornou-se no peão de que a CIA precisava.
Ainda assinou os acordos de Bicesse, porque assinava tudo o que apontasse ao poder. E acabou descartado, como as coisas inúteis, quando a CIA já não precisava dele e o denunciou. Mas só se deixou abater, quando já não havia mais traições para fazer.
Hoje, só uma coisa fica por esclarecer: que espécie de razões moveram Mário Soares, tão solícito e atento à sorte de Savimbi, sempre que os ventos lhe sopravam nefastos? E que fazia o seu filho, por pouco morto na Jamba, quando um avião por lá se despenhou?

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A gripe dos porcos

Assustados com a barragem das notícias, os cidadãos mais atreitos à crença na imortalidade acorrem à farmácia, em busca de salvação. Reconforta-lhes a alma terem na casa de banho uma dúzia de embalagens do Tamiflu milagreiro.
Mais lhes valera atentarem no exemplo do rafeiro de Pavlov. E em lugar do Tamiflu, comprarem umas acções da fábrica que o produz.
Cá por mim, foi o que fiz. Enquanto a vida durar, não há como um bom dividendo para dar a volta a certas pandemias.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O futuro energético de Portugal

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal

Quem participou, no passado dia 21 de Abril, na conferência sobre o futuro energético de Portugal, promovida pela CIP e pela Ordem dos Engenheiros no Museu da Electricidade em Lisboa, terá percebido que a situação energética no mundo é bastante mais preocupante do que os mais pessimistas poderiam imaginar.
Apoiado nas conclusões do World Energy Outlook de 2008, o representante da Agência Internacional de Energia disse da forma mais diplomática possível (leia-se, menos alarmista), que até 2030 vai ser preciso colocar em produção mais 40 milhões de barris de petróleo por dia, originários de novos projectos de exploração. Isto só para compensar as quebras que se prevêem nas grandes jazidas actualmente em produção. Ora a verdade é que ninguém sabe onde ir buscar esta imensa quantidade de crude, equivalente à actual produção da OPEP, ou à produção de quatro Arábias Sauditas. Será uma tarefa altamente improvável de levar a cabo, tendo em conta a dimensão do “buraco”. E tornada ainda mais difícil devido aos problemas financeiros da actual crise económica e do baixo preço do crude, uma vez que muitos projectos de exploração foram adiados, ou simplesmente cancelados.
A emissão de gases com efeito de estufa, responsáveis pelas alterações climáticas, é outro dos grandes problemas, e o cenário não podia ser mais negro. Aquilo que a Europa se propõe arduamente reduzir nos próximos 10 anos – desde hoje até 2020 - será menos do que as emissões que a China lançará para a atmosfera, nesse ano, nuns escassos 5 meses.
Mesmo com um moderado nível de crescimento económico de 2% ao ano, alcançar as metas programadas para 2050 significaria atingir, nessa data, um teor de carbono produzido não superior a 6 g de CO2 por cada dólar gasto. E esse é um valor altamente improvável, dado ser cento e trinta vezes inferior ao actual.
Também foi afirmado, na conferência, que a dependência energética externa da Europa, em gás natural, (a grande aposta para a produção de energia eléctrica), vai passar dos actuais 60 para 80%. Ora ninguém sabe muito bem donde esse gás poderá vir, se do Norte de África ou do Médio Oriente, já que o gás russo não chegará para todas as encomendas.
Valeu na circunstância a visão optimista e cornucopiana do actual ministro da Economia, para quem as renováveis são a panaceia que irá resolver todos os problemas. Mas tal visão foi arrasada pelo Eng. Mira Amaral, que falou em seguida. Sobre as energias renováveis, o antigo ministro referiu a confusão que é feita entre potência instalada e energia produzida. Falou do problema da intermitência, intrínseco às renováveis, e concluiu que em 2020, na melhor das hipóteses e a custos pouco competitivos, a energia eólica representará 4 ou 5% do total da energia utilizada em Portugal. Lamentou a forma pouco responsável como o governo de Guterres cancelou a barragem do Baixo Côa, e advogou um entendimento entre Portugal e Espanha sobre a energia nuclear.
Esta conferência veio consolidar a nossa convicção de que a questão energética está na base da actual crise económica e financeira. Sem energia barata e abundante, não será possível retomar o crescimento económico. Mas já estamos a viver o momento do “pico do petróleo”, que nos vai empurrando para um beco sem saída. E não parece provável, nestas condições, que a produção de petróleo no mundo alguma vez venha a ultrapassar a barreira dos 100 milhões de barris por dia.
Perspectiva-se um futuro de ciclos curtos de crescimento/depressão, associados a uma alternância no preço do petróleo. Ao verificar-se, uma retoma do crescimento impulsiona um aumento no consumo de crude. Mas isso fará aumentar o seu preço, devido à escassez da oferta. Segue-se nova diminuição do crescimento, num ciclo interminável e desgastante.
Apostar numa retoma keynesiana, segundo o modelo Obama, mesmo pela via verde (renováveis, sequestro do carbono, eficiência …) será ainda apostar no crescimento contínuo da economia. Mas não parece ser a via adequada, pois não conduzirá à saída do ciclo.
O crescimento e a prosperidade, baseados no consumo e no sucesso material dos últimos 50 anos, em que a economia mundial cresceu 5 vezes, é uma ideia completamente insustentável. E já está a minar os fundamentos para uma nova prosperidade, alicerçada numa visão menos materialista do progresso.
Teremos que assumir as consequências deste facto e enfrentar um desafio obrigatório: é necessário um novo tipo de sistema económico. E até, quem sabe, uma nova forma de organização social. Para que seja possível à humanidade prosperar num mundo com recursos finitos, e com uma fronteira ecológica já claramente perceptível à nossa frente.

Pastiche IX

Aos homens farás tu como os esquilos
que descascam os frutos da nogueira.
O que são está lá dentro.

terça-feira, 5 de maio de 2009

O arranha-mamanço

Arranha-mamar (v. intrans.): empatar, fazer de conta, simular, nem lá ir nem fazer minga.
Arranha-mamanço: acto ou gesto de arranha-mamar; paleio de cona (pleb.).
Arranha-mamas: aquele que cultiva o arranha-mamanço.

Grosso modo, muito grosso, há arranha-mamas de 3 tipos:
O tipo Loureiro, representado por um menino de coro, a fazer de anjinho de asas brancas e covinha na bochecha. O seu tique recorrente é a falta de memória selectiva, a amnésia cirúrgica. Normalmente aparece de mãos postas, prontinho a pô-las no fogo, e a jurar pelo que tem de mais sagrado.
O tipo Isaltino, mais do género chavalo que se meteu na passa derivado às más companhias. Os exemplares desta espécie são batidos no relativismo. Alegam que toda a malta vai à marmelada, só lá não vai quem é parvo. E conhecem cabeleireiras na Suíça que ficaram milionárias a pintar madeixas cor de rosa.
O tipo Berlusconi é o padroeiro-mor, o arranha-mamas vintage, e é menos visto por cá, pelas grandes exigências tecnológicas. Adquiriu a qualidade de ir directamente à raiz da coisa: compra as televisões e os jornais que nos contam a história que lhe interessa ver contada. E quando é a própria legítima a recalcitrar, desmascara-lhe ali mesmo a pouca vergonha: ela anda mancomunada (leia-se metida entre lençóis) com a oposição inteira. Que ainda por cima cheira mal da boca.
Esta taxonomia é por força imperfeita, devido à enorme biodiversidade que se verifica no arranha-mamanço. Gestores do público, do privado e do misto, políticos rigorosamente centristas ou nem tanto, empresários do camandro, deputados de profissão, lavradores da CAP, presidentes da Madeira, formadores de opinião, criativos da pós-modernidade, autarcas dinossauros, neo-literatos, desembargadores, filósofos do saudosismo, hermeneutas do Bandarra, é um nunca mais acabar. Todos a ver se já estamos a dormir, só para apagarem a luz.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Relíquia antiga II

Fiquei algo pasmado quando o vi aparecer à primeira consulta, confesso que não reconheci nele o tipo de paciente que se dispõe a pagar o meu tempo. Era um homem na casa dos quarenta, e tinha um ar frágil e consumido. Vestia uma bata de sarja azul, dessas de operário, e trazia semeadas no cabelo desgrenhado aparas de madeira. Quando me disse que era carpinteiro, tive as minhas dúvidas. Porque o ofício deixou-me esta costela de detective, e vi-lhe as mãos demasiado finas para afagos de enxó e de garlopa. Rocei devagar a palma no queixo, e mandei-o deitar-se na marquesa.
Não foi preciso desbravá-lo muito, logo se pôs a relatar uma viagem ao egipto, há uns vinte e tal anos. Fora uma teimosia da mulher, boa tecedeira e cardadora de lãs, mas de um alevantado vezo que sempre lhe causara inquietações, como quem trouxesse na barriga um rei qualquer. Um dia ela apareceu a dizer que tinham de partir sem demora, era preciso poupar a criança à perseguição dos inocentes, para cumprir a voz do profeta e salvaguardar-lhe o desígnio transcendente.
Alugaram um solípede caríssimo, mas a viagem foi cheia de percalços e acabou por durar uma eternidade. Volta não volta ela dizia que era preciso calçar ao asno os cascos ao contrário, assim estava escrito, para confundir os perseguidores. O pobre do animal é que já não estava capaz de tais subtilezas, fez o que pôde para adequar o passo às professias, mas as constantes mudanças de solias complicavam-lhe a andadura. Voltaram a casa os quatro sãos e salvos, depois de atravessarem o deserto, sabe deus como.
De resto, ele sempre olhara para este filho com algum desconforto, desde que a aparadeira confirmara a virgindade da mãe, na altura do parto. Mas os problemas com ele estavam só a começar. Desde cedo se mostrou um superdotado, atraía multidões com enigmáticas parábolas abrangentes, e ultimamente começara a constar que tinha poderes. Transformava a água em vinho, e matara a fome à multidão com meia dúzia de pães e um par de peixes do lago.
Eu não sou apostólico nem romano, e já vi muitos abismos do mundo. Não costumo perder as estribeiras com os relatos dos pacientes, mas não assim com este. Fiz logo entrar a equipa da camisa-de-forças, e mandei-o internar imediatamente. Imagino o que não seria, ter que repetir tudo outra vez.

domingo, 3 de maio de 2009

Pastiche VIII

Entre o cantar das águas e o balir dos cordeiros,
sorvendo o ar azul, ébrio de mil perfumes,
retoiça Pã no prado, entre risos de ninfas.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Portugalmente (38)

(...)
A manhã vai subindo no silêncio do largo e o viajante hesita. Já viu muitas aldeias com chalés desmedidos, já se comoveu com antigos balcões e alpendres ao abandono, já quis imaginar como era a vida passada, espreitando entre portas que há muito ninguém abre. Mas ainda não tinha sentido este peso no peito, que agora sente e não sabe explicar. Vê estas casas donde ninguém sai, e as ruas adormecidas no sono da manhã. Já encontrou aí velhas arquitecturas tratadas a preceito, de persianas corridas, ínfimas ilhas na fealdade geral. E acaba a concluir que algum saber antigo se perdeu aqui, um fio se rompeu.
Ao viajante cerca-o a aflição deste largo, que é mais que a solidão, é mais que o abandono. Mas graves hão-de ser as aflições deste padeiro, que acaba de chegar numa carrinha. O alarido da buzina foi crescendo rua fora até chegar ao largo, parecia alguém aflito por tirar o pai da forca, e era apenas ele a chamar as freguesas. Vieram cinco, por junto, e só se calaram as trombetas quando apareceu a primeira.
Vem da Prova, o padeiro, duas vezes por semana. Faz o seu giro aí pelas aldeias, tal como o carro da fruta, o da carne, o do peixe congelado. Meteu-se no negócio quando voltou de Moçambique, há muitos anos atrás, alguma coisa havia de fazer. E bem podia fartar meio mundo de pão, não fora o mercado escasso e tanta a concorrência. Outros vêm, doutros lados, que não dividiram territórios. Fazem as mesmas rotas, os dias é que alternam.
O viajante bem queria ouvir o homem sobre as passadas vidas africanas, lá tem as suas razões. Se era dono de machambas, ou cantineiro do mato, ou funcionário de alguma açucareira. Ou mesmo chefe dum posto qualquer. Nunca se sabe quando ficou lá para trás, enterrada na areia, uma garrafa de diamantes, como já temos visto. Mas o mestre vende pão e já partiu, que este serviço está feito e o resto falta fazer.
Ao contrário do que atrás prometeu, o viajante não voltará à rua de alcatrão. Vai até ao fundo do largo, onde encontra uma capela que já foi da Senhora da Assunção, e agora é um armazém de ferralhas domésticas. Daqui parte a avenida 25 de Abril.
O promissor topónimo, se já foi bandeira de tantas esperanças, apenas vem aqui alvoroçar contradições ao viajante. Entre as muitas alegrias que nasceram, e este desconforto que ficou. Mas em boa hora tomou tal decisão, que há-de encontrar no caminho quem lhe vai salvar o ânimo. É a dona Celeste que ali está, passada a primeira esquina, sentada a ler num banquito, à sombra da parede. Veio dar um sol às pernas, cansadas de tantas lidas que já não querem andar.
A dona Celeste põe o viajante a remorder invejas, por mais que uma razão. Está a ler um livrito das suas devoções e não precisa de óculos, embora leve já na conta os seus noventa e tal anos. Além disso traz no rosto a maior serenidade que o viajante já viu, e oferece-lhe o ar mais manso que ele podia encontrar. O viajante, que a vida tornou céptico, olha para esta figura e fica sem saber o que fará do cepticismo. Diz ela que mora ali ao lado, na casa duma filha, embora tenha casa sua, muito perto. Mas não pode lá viver, porque a vida não é sempre o que esperamos dela.
Não nasceu nesta aldeia, criou-se na terra quente. Veio para cá trabalhar numa casa de comércio, com pouco mais de vinte anos, quando a terra tinha força. E quando o patrão morreu, que já era bem velho, os herdeiros viviam na cidade e entregaram-lhe o governo da casa. Eram ele as vendas do comércio, e as rendas de muitas terras, e a lã de vários rebanhos quando chegava a tosquia, e as vitelas que os pobres aí criavam à razão de meio-ganho.
Havia então um rapaz que ficara lá na aldeia e andava a requestá-la. Chamava-se ele Albino, e não viam outra coisa aqueles olhos. Mas ela ainda não estava decidida, o que mais a ocupava era a carga dos trabalhos e as obrigações que tinha. Ou talvez gostasse doutro, não sabe explicar bem, ele tinha-se ido à África e ainda lhe mandou cartas que vinham de Benguela. Mas breve pararam elas, porque apanhou uma febre e lá morreu.
Com uma tristeza assim, mais parado ficou à dona Celeste o coração. E foi no meio de tal indecisão que apareceu um rapazola, irmão do falecido, que andara em Matosinhos a servir de marçano. Deu-lhe pena o desamparo do rapaz. O Albino bem mandou dizer que dava cabo da vida se não casasse com ela. Mas quem é que levava a sério uma palavra assim?
O viajante está encantado a ouvir esta conversa, já se esqueceu dos conflitos que trazia. Senta-se numa pedra e nem desvia os olhos da figura.
Quando a vida do comércio acabou, os senhores que estavam na cidade mudaram-na de casa e fizeram-na feitora. Era a casa mais mimosa da aldeia, chamavam-lhe o paraíso. E foi então que aceitou o casamento, por mor da lida das terras, com o tal irmão do falecido em Benguela. No mesmo dia da boda, lá no povo onde ficara, foram dar com o Albino afogado num poço.
A vida da dona Celeste tem sido bem prolongada, mas não foi o que podia, nem o que merecia ser. Quem se quer fazer não pode, quem o é já nasce feito, como ela explica, serena. Criou os seus cinco filhos, que não se cansa de encomendar a Deus, e lá fizeram da vida o que souberam. Muitas vezes sente pena das sem-razões antigas de tanto mau viver, e das aflições em que eles se criaram. Mas o seu homem era assim, foi sempre um destemperado, um algoz ensoberbado que não chegou a crescer.
A dona Celeste diz estas coisas todas como se não fossem suas. Tem nos olhos a mansidão tranquila de quem já fez pelo mundo o que tinha a fazer. Não venha ele a salvar-se, não estará nela a culpa. E agora só está à espera de que Deus se lembre dela, e um dia a venha buscar.
Ao viajante vem-lhe à cabeça um turbilhão de pensamentos, nem sabe bem o que fazer com eles. Fica a olhar este corpito frágil, que veio dar um sol às pernas, encostado à parede. Queda-se silencioso, é em si mesmo que ficou a pensar. Em quantos paraísos já viu, cometem uns pecados originais e pagam outros por eles. À dona Celeste aconteceu-lhe o mesmo, que a vida não é sempre o que esperamos dela. Alguma coisa prende aqui o viajante, será porque está perto um paraíso. Mas decide ir-se embora, que veio à procura de conversa e acabou silenciado.
- Não tenha pressa de partir, não sabe a falta que faz!
- Que falta faço eu?!
(...)